ETIENNE DECROUX E A MÍMICA DAS METÁFORAS
Talvez o único mestre europeu que elaborou um sistema de regras comparável às de uma tradição oriental (BARBA, 1991:8). Paris, no início do século passado, era um verdadeiro campo de batalha nas artes, dos conflitos dos estilos, com vários movimentos e manifestos. (...) Cercado por esta atmosfera, Etienne Decroux nasceu no dia 19 de julho de 1898 e faleceu no dia 12 de março de 1991, após ter dedicado toda a sua vida na construção de uma nova forma de arte: a MÍMICA CORPORAL DRAMÁTICA.
(...) Até os vinte e cinco anos, exerceu uma série de trabalhos manuais: trabalhou em construções, foi pintor, encanador, carpinteiro, açougueiro, lavador de prato, além de ter trabalhado em hospitais e fazendas. (...) Freqüentava o circulo dos anarquistas franceses e, embora fosse de origem humilde, possuía uma oratória invejável, impressionando seus amigos com a sua verbosidade, seus discursos e foi logo apelidado de orador.
Um dia, passando pela rua, avistou uma placa que anunciava aulas de dicção na Ècole du Vieux Colombier. E foi assim que, em 1923, aos 26 anos, entrou em contato com os ensinamentos de Copeau. Sua devoção pelo teatro inspirou Decroux profundamente e, nas aulas de máscara na Ecole du Vieux Colombier, ele enxergou o potencial do que se tornaria a mímica corporal dramática.
(...) Em 15 de maio de 1924, o Teatro da Vieux Colombier fechou e cerca de quinze estudantes foram convidados para se estabelecerem em Burgundy para se dedicarem à escola e, entre eles, estava Decroux. Esta cruzada não durou muito tempo, pois, após cinco meses, Copeau resolveu fechar a escola devido à exaustão de anos de intenso trabalho e dificuldades financeiras.
Decroux voltou para Paris, trabalhou com Gaston Baty e, logo em seguida, com Louis Jouvet, com quem ficou até 1925, ambos treinados por Copeau. Em 1926, juntou-se à trupe de Charles Dullin no Téâtre de l”Atellier, em Montmartre, onde ficou até 1934, trabalhando como ator na trupe e como professor de mímica na escola.
(...) Em 1931, Jean Louis Barrault entrou para assistir às aulas no Téâtre de l”Atellier. Jovem e entusiasmado, conheceu Decroux e apaixonou-se pela Mímica. Ele se tornou seu primeiro discípulo. Pesquisaram e ensaiaram intensivamente, foram inseparáveis e cúmplices na busca de uma “mímica nova”.
(..) Decroux foi um ator de teatro e cinema muito ativo. Atuou em mais de sessenta e cinco peças de: Aristófanes, Ruzzante, Shakespeare, Ben Johnson, Moliére, Tolstoy, Strindberg, Pirandello, Marcel Achard e Jules Romains. Seus diretores foram: Copeau, Gaston Baty, Jouvet, Dullin, Antonin Artaud e Marcel Herrand, entre outros. Participou de mais de trinta filmes, incluindo Les Enfantes du Paradis, sempre com os diretores Jacques Prévert e Marcel Carné. Esses trabalhos lhe proporcionavam condições para continuar suas pesquisas e criações na Mímica Corporal Dramática.
Embora os ensinamentos de Copeau tenham acendido a chama em Decroux, foi com este que aconteceu a crítica e a batalha radical ao “império do texto”. Copeau queria que o ator se preparasse para servir melhor ao texto. Já com Decroux, a conquista da liberdade do ator estava diretamente relacionada à sua autonomia quanto às outras artes e, sobretudo, à literatura.
(...) Ele condenava o sistema de teatro que permitia que o texto aparecesse antes do espetáculo ser confeccionado, ditando, assim, o seu rumo, em que a palavra aparece sem justificativa, pois, para ele, o ator não podia abrir mão de sua corporeidade em cena. As palavras, segundo Decroux, não podem trazer todo o movimento da mente, só o corpo pode concretizar as idéias, transformar as emoções em ações físicas.
(...) Ele depositava toda a responsabilidade da criação diretamente no ator. Defendia a posição de que se deveria ensaiar a peça antes de escrevê-la, pois, por mais que o autor fosse um especialista da arte corporal, sentado numa mesa, com uma caneta na mão, estaria incapaz de imaginar todas as possibilidades da ação física.
(...) Decroux ensinou por mais de cinqüenta anos e desenvolveu uma técnica corporal única. Explorou a idéia do corpo dilatado, que potencializa a presença do ator e a percepção do espectador, do equilíbrio precário, em oposição ao modo de se movimentar natural e enfatizar as tensões e a energia de cada movimento a fim de vivificar sua presença. Aprofundou-se nos estudos das articulações e contrapesos (físicos e morais); desenvolveu uma complexa gramática corporal, codificando escalas corporais simples ou complexas em movimentos de inclinação lateral (egipciano), frontal (profundidade), rotação e translação; dividiu o corpo em coluna vertebral (tronco), rosto, braços e pernas. O tronco foi desmembrado em cabeça, pescoço, peito, cintura e pélvis, promovendo uma infinidade de combinações de movimento entre eles; introduziu conceitos importantes como fazer sem olhar ou olhar sem fazer, os dinamoritmos (dinâmica dos ritmos, inter-relação de força, quantidade, duração e intensidade), oposição, equivalência, imobilidade ativa, espasmos (impulsos), movimentos isolados ou intercorporais, ondulações, movimentos simples, bidimensionais ou tridimensionais, andares, figuras de estilo, quadros de mímica, estatuárias móveis etc.
(...) A mímica moderna prefere o uso da metáfora a descrever acontecimentos. Ela não ilustra ações cotidianas, mas prefere mergulhar nos movimentos da emoção, como quando Decroux dizia que desejava tornar visível o invisível. A importância da metáfora para Decroux é o que promove o rompimento drástico com a Pantomima do século XIX, pois ela não era vista simplesmente como uma linguagem poética, mas como uma maneira de perceber e entender o mundo em que vivia.
(...) Passaram pela sua escola diversos artistas: Barrault, Marcel Marceau, Yves Lebreton, os diretores do Théâtre du Movement, Claire Heggen e Yves Marc, Desmond Jones, o casal franco-americano Corinne Soun e Steve Wasson diretores do Théâtre de L’Ange Fou, o diretor belga Jan Ruts do Pyramide op de Punt, os diretores alemães Willie Spoor e Frits Vogels, os canadenses Denise Boulanger e Jean Asselin do Omnibus, Gilles Maheu do Carbonne 14, os americanos Leonard Pitt, Jan Monroe, Daniel Stein, Willian Fisher, o português Luis de Lima, os brasileiros Luis Otávio Burnier, Natália Timberg, Maria Clara Machado, Sabato Magaldi entre outros(8).
Decroux faleceu no dia 12 de março de 1991, após ter dedicado toda a sua vida à construção de uma forma de arte: a MÍMICA CORPORAL DRAMÁTICA. No dia 13 de novembro, comemora-se, em todo o mundo, o dia internacional da Mímica, data proclamada no ano de 1998, pelo Instituto Internacional de Teatro (UNESCO), em comemoração ao seu nascimento. Durante os seus mais de cinqüenta anos de ensinamento e pesquisa da MÍMICA CORPORAL DRAMÁTICA, Decroux defendeu e promoveu a Mímica, como forma independente de arte. Considerado o pai da Mímica Moderna, Decroux valorizava a arte de ator, livre da opressão dos textos e, nisso, compartilhava das idéias de Antonin Artaud (9), quando este delatava a tirania do texto, referindo-se ao domínio dos autores literários no teatro.
Etienne Decroux foi e continua sendo a maior referência da mímica moderna, criador da primeira gramática corporal no ocidente para a arte de ator, tão complexa e tão original quanto a dos teatros orientais e do ballet. Sua pesquisa é marcante para a formação do Teatro Físico. Entre todos que passaram por ele, destaca-se seu primeiro e grandioso discípulo, Jean Louis Barrault.
(8) Dedicarei o segundo capítulo deste trabalho para explorar mais a fundo o movimento da atuação física no Brasil. [volta]
(9) Decroux atuou no primeiro espetáculo do Teatro Alfred Jarry, em 1927, dirigido por Artaud. A peça era Lês Mystèries de L´Amour de Roger Vitrac. [volta]